DOI: 10.1590/S0100-72032008000400002 - volume 30 - Abril 2008
Bruno Ramalho de Carvalho, Júlio César Rosa e Silva, Ana Carolina Japur de Sá Rosa e Silva, Hermes de Freitas Barbosa, Omero Benedicto Poli Neto, Francisco José Cândido dos Reis, Antônio Alberto Nogueira
Introdução
A endometriose é uma entidade benigna, estrogênio-dependente, comum na clínica ginecológica e associada a queixas de dor pélvica e infertilidade, acometendo 6 a 10% das mulheres em idade reprodutiva1. A etiopatogenia da doença não encontra explicação única na literatura. Entre as teorias clássicas, atribui-se a endometriose ao fluxo menstrual retrógrado2, à transformação metaplásica3 ou mesmo à deposição iatrogênica em procedimentos cirúrgicos4.
A endometriose da parede abdominal pode ser encontrada principalmente após cirurgias em que há invasão da cavidade endometrial, tais como cesariana e laparoscopias4,5. Considera-se que a manipulação do tecido endometrial possa permitir a implantação de suas células nos diferentes planos da parede abdominal, durante o fechamento da cavidade, ocorrendo principalmente na cicatriz operatória. A endometriose umbilical pode incidir em até 1% das mulheres submetidas previamente a operação cesariana6, mas sua ocorrência como doença primária em pacientes sem cirurgias prévias ganha espaço na literatura7-9.
Dessa forma, postulam-se novas hipóteses etiopatogênicas, como as que envolvem particularidades imunológicas e inflamatórias do microambiente pélvico-peritonial10 e o transporte vascular e linfático de células endometriais. A literatura traz vários relatos de endometriose extrapélvica, inclusive em órgãos distantes da cavidade endometrial, como pulmões e cérebro11,12, fortalecendo o potencial de disseminação linfática e/ou vascular de células endometriais autóctones. Ainda, recentemente, tem-se atribuído a endometriose a fatores ambientais, relacionados à contaminação de alimentos de consumo humano pelas dioxinas - um derivado da incineração de lixo e do processamento de metais13.
Este trabalho apresenta uma série de quatro casos de endometriose na cicatriz umbilical, em pacientes no menacme, sem cirurgias pélvicas prévias, e se propõe a discutir a etiopatogenia com base em teorias que divergem das classicamente atribuídas à endometriose.
Métodos
Foram incluídas no estudo quatro pacientes com idade entre 33 e 43 anos, com queixa de sangramento umbilical, associado ou não a dor pélvica, com evolução de dois meses a quatro anos. Todas haviam sido atendidas no Ambulatório de Dor Pélvica e Endoscopia em Ginecologia do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo (FMRP-USP), entre 2001 e 2005.
Em casos semelhantes, solicita-se habitualmente complementação do exame físico com a ultra-sonografia da parede abdominal, procedendo-se à exérese cirúrgica no momento da identificação de lesões sugestivas de endometriose umbilical. Para avaliação completa, em nosso serviço, solicitamos também ultra-sonografia pela via transvaginal, com intuito de verificar a existência de focos de endometriose das estruturas da pelve, realizando também abordagem laparoscópica quando de sua suspeita.
À avaliação anatomopatológica, o diagnóstico de endometriose é estabelecido a partir da presença de dois dos três aspectos: glândulas endometriais, estroma endometrial (células fusiformes) e pigmento de hemossiderina4 (Figura 1).
O seguimento pós-operatório é feito por consulta após sete dias e seis semanas do procedimento e, depois, periodicamente, a depender da evolução de cada caso e da terapêutica clínica complementar realizada.
Resultados
A caracterização clínica das pacientes, assim como queixas, tempo de evolução e achados de exame físico estão descritos no Quadro 1. Nenhuma paciente apresentava histórico de cirurgia abdomino-pélvica prévia, tendo uma delas sido abordada superficialmente para exérese de endometrioma da cicatriz umbilical.
As avaliações ultra-sonográficas das quatro pacientes evidenciaram imagens umbilicais hipoecogênicas compatíveis com a hipótese diagnóstica de endometriose e, assim, todas elas foram encaminhadas para exérese cirúrgica da lesão. A dosagem do marcador sérico CA-125 foi realizada em três das quatro pacientes, com níveis dentro da normalidade, variando de 6,8 a 10,1 U/mL.
A concomitância de endometriose pélvica apenas foi confirmada para a Paciente 1, por laparoscopia, o que permitiu o encontro de lesões peritoniais em fossas ováricas, fundo de saco posterior e ambos os ligamentos uterossacros. De acordo com a classificação proposta pela American Society for Reproductive Medicine14, foi dado diagnóstico de doença moderada e os focos foram tratados com eletrocoagulação.
Após abordagem cirúrgica da lesão, as quatro pacientes evoluíram com melhora completa das queixas, tendo recebido alta ambulatorial após seguimento de um ano - exceto pela paciente portadora de doença moderada, a qual permaneceu em acompanhamento em uso de progestagênio isolado para controle da doença.
Discussão
A explicação da presença de focos de endometriose fora da cavidade pélvica e na ausência de cirurgias prévias não encontra respaldo nos mecanismos etiopatogênicos descritos classicamente. No caso da endometriose umbilical primária, por não haver associação com a manipulação endometrial ou contato direto com o fluxo menstrual retrógrado, ganham destaque teorias que contemplam alterações imunológicas e do microambiente pélvico, e, principalmente, os transportes linfático e hematogênico, especialmente atrativos para explicar os quadros umbilicais15-17.
A migração por transporte vascular ou linfático foi proposta inicialmente há mais de oito décadas18. Em 1940, Hobbs e Bortnick19 demonstraram o potencial de implantação transvascular de glândulas endometriais viáveis e, em 1958, Scott et al.20 constataram migração de contraste injetado na cavidade pélvica para a cicatriz umbilical, via ducto umbilical obliterado. Apesar dos estudos prévios, dados recentes têm fortalecido ainda mais os mecanismos pelos quais o endométrio tópico das portadoras seria o ponto de partida para a disseminação metastática da doença. Alterações como a capacidade aumentada de proliferação e invasividade celular21, diminuição da apoptose22, maior expressão de proteínas de adesão celular (integrinas)23 e de degradação da matriz extracelular (metaloproteinases)24,25 têm sido descritas em endométrios de mulheres com endometriose. Também trabalhos atuais reportaram a presença de tecido endometrial na rede linfática periumbilical e pélvica26,27.
Estudos recentes procuram alterações ambientais que possam levar ao desenvolvimento da endometriose e à exposição à 2,3,7,8-tetraclorodibenzo-p-dioxina (TCDD), comumente chamada dioxina28,29. A TCDD é um poluente lipofílico derivado da incineração de lixo e do processamento de metais, que contamina alimentos de consumo humano13 e interage de forma pungente com mecanismos endócrinos e imunológicos pouco conhecidos, mas potencialmente envolvidos na etiopatogenia da endometriose30.
Por ação da TCDD, que responde por alterações de genes codificadores da síntese de estradiol e receptores progestagênicos, também ocorre interferência nos processos de produção e metabolismo de esteróides sexuais. Igarashi et al.30 atribuíram ao poluente a desproporção entre as isoformas A e B dos receptores progestagênicos em células endometriais de mulheres portadoras da doença, e a disfunção da ação progestagênica nessas células pode ser o elemento chave na fisiopatologia da endometriose. Postula-se que mutações do gene codificador dos receptores progestagênicos possam levar à desproporção entre as isoformas A e B, gerando resposta disfuncional marcada pela resistência à progesterona, o que culminaria com elevação dos níveis estrogênicos e agravamento da doença31. Attia et al.32 defenderam a hipótese, ao apontarem ausência da expressão de receptores tipo B e redução expressiva do tipo A em células endometrióticas.
Também a resistência progestagênica causada pela TCDD permite expressão aumentada de produtos que degradam a matriz extracelular (metaloproteinases)29. A relação entre padrões alterados de expressão de metaloproteinases e seus inibidores e a etiopatogenia da endometriose está bem relatada na literatura24,25, contribuindo para a invasão e, conseqüentemente, para o crescimento das lesões de endometriose.
No que diz respeito à influência imunológica, atribui-se à TCDD a ativação de inúmeros genes responsáveis pela transcrição de citocinas pró-inflamatórias, com estímulo crônico aumentado à secreção de IL-1, IL-6, IL-8, TNFa, INFg29 e VEGF33 - este sabidamente envolvido na fisiopatologia da endometriose25.
Apesar das fortes evidências acerca do transporte metastático vascular e/ou linfático de células endometriais em quadros de endometriose umbilical primária, não se podem ignorar os dados que relacionam a doença a fatores ambientais, como a contaminação alimentar pela dioxina. Dessa forma, tendemos a acreditar que as teorias, na verdade, façam parte de um único e enigmático processo etiopatogênico, em que mecanismos diversos atuam de modo interativo, podendo a endometriose, assim, manifestar-se em locais e de maneiras absolutamente efêmeras. Em razão disso, devemos estar sempre atentos para a possibilidade de endometriose umbilical quando da presença de nodulações ou sangramento umbilicais, ainda que não exista relato de cirurgia pélvica prévia com manipulação endometrial.
Recebido: 27/8/07
Aceito com modificações:18/1/08
Trabalho realizado no Departamento de Ginecologia e Obstetrícia da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo - USP - Ribeirão Preto (SP), Brasil.