DOI: 10.1590/S0100-72032008000200005 - volume 30 - Fevereiro 2008
Lúcio Márcio Perri de Resende, Marco Antônio Rodrigues Freire Matias, Gracinda Maria Baltazar de Oliveira, Márcio Almeida Salles, Frederico Henrique Corrêa Melo, Helenice Gobbi
Introdução
A mamografia de rastreamento tem sido considerada o teste mais sensível para a detecção precoce do câncer de mama não palpável1,2. O estudo histopatológico de biópsias mamárias de pacientes portadoras de mamografias contendo microcalcificações suspeitas revelou câncer de mama em até 30% dos casos, sendo que o agrupamento de microcalcificações heterogêneas e pleomórficas, encontradas no estudo mamográfico, foi representativo de câncer in situ em até 90% dos casos3,4. Hoje, as microcalcificações mamárias correspondem a cerca de metade das indicações das biópsias de mama e o estudo anatomopatológico da biópsia mamária excisional guiada por fio metálico é considerado o padrãoouro na avaliação dos achados anormais contendo microcalcificações mamárias5.
Muitas microcalcificações mamárias suspeitas detectadas pela biópsia revelaram ser benignas, observandose sobreposição de aspectos mamográficos de doenças benignas e malignas, razão pela qual a análise cuidadosa das microcalcificações deveria ser realizada na tentativa de melhorar a especificidade do exame6. Muitas classificações radiológicas têm sido empregadas na tentativa de diferenciar microcalcificações associadas a lesões benignas e malignas. No entanto, ainda não há critérios que permitam realizar estas diferenciações com segurança. Le Gal7, em 1984, avaliou a morfologia das microcalcificações detectadas pela mamografia, comparandoas com a histopatologia, e propôs critérios para diferenciálas. Uma classificação com cinco tipos foi proposta; porém, atualmente, não tem sido muito utilizada7. Em 1993, o Colégio Americano de Radiologia (ACR)8, com o objetivo de padronizar a descrição das mamografias, desenvolveu o Breast Imaging Reporting and Data System (BIRADSTM), acrescentando outros critérios além da morfologia das microcalcificações mamárias, tais como densidade, distribuição e agrupamento das microcalcificações. Este sistema de classificação já se encontra na quarta edição8,9.
Alguns estudos têm comparado a acurácia do sistema de classificação de Le Gal e a classificação de BIRADSTM para predizer a malignidade das microcalcificações mamárias suspeitas, porém, a maioria dessas análises é feita em separado, não conjugando os dois sistemas. Resultados de estudos anteriores mostram que mesmo tentando seguir estritamente os critérios propostos nestas classificações, não tem sido possível diminuir a ambigüidade da classificação das microcalcificações mamárias4.
Nosso estudo foi realizado com o intuito de verificar o valor preditivo positivo (VPP) na análise das microcalcificações mamárias suspeitas, com o emprego dos critérios das classificações de Le Gal e BIRADSTM, fazendose a correlação entre achados mamográficos e histopatológicos.
Métodos
Foram analisados, retrospectivamente, registros de pacientes do sexo feminino atendidas no período de janeiro de 1998 a junho de 2003. Todas as pacientes haviam sido submetidas à exérese de segmento mamário por marcação estereotáxica ou biplanada, por microcalcificações mamárias consideradas suspeitas em mamografia de alta resolução com ampliação mamográfica.
Para cálculo do tamanho da amostra, foi empregado o cálculo para estudos descritivos que determinou que 130 casos seriam adequados para as análises estatísticas. Os 130 casos foram selecionados a partir dos arquivos dos blocos cirúrgicos, sendo 106 casos (81,5%) oriundos do Serviço de Mastologia da Maternidade Odete Valadares e 24 casos (18,5%) do Hospital das Clínicas da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).
Todos os casos selecionados apresentaram apenas microcalcificações mamárias suspeitas à mamografia, sem nenhuma outra alteração tal como massa ou distorção arquitetural. As pacientes foram submetidas à biópsia no serviço de referência. No período em que os casos foram catalogados, estes serviços ainda não utilizavam rotineiramente as classificações de Le Gal e de BIRADSTM para os laudos das mamografias.
Os critérios de inclusão para a seleção da amostra foram: pacientes assintomáticas que apresentassem microcalcificações mamárias suspeitas à mamografia e que possuíssem, além das incidências padrões, ou seja, crâniocaudal (CC) e médiolateraloblíqua (MLO), incidências com magnificação para análise de microcalcificações mamárias; pacientes submetidas à exérese cirúrgica das microcalcificações mamárias por meio da marcação précirúrgica pela técnica estereotáxica ou localização biplanada; espécimes cirúrgicos obtidos e submetidos a exame mamográfico; lâminas originais e/ou blocos referentes ao espécime cirúrgico disponíveis para revisão histopatológica.
As mamografias foram selecionadas e catalogadas por um pesquisador independente e, posteriormente, foram revistas por dois examinadores em tempos diferentes, preenchendose protocolo específico, na tentativa de diminuir o vício de seleção e de amostragem. Todas as mamografias foram analisadas por dois examinadores experientes, sem conhecimento prévio dos resultados das classificações de Le Gal e BIRADSTM ou do resultado histopatológico. Ambos os examinadores tinham formação em Imagenologia Mamária, com mais de dez anos de experiência e grande familiaridade com os dois sistemas de classificação empregados. A avaliação do exame mamográfico foi realizada com negatoscópio apropriado para a leitura de mamografias e lentes de aumento. Nos casos em que não houve concordância, fezse nova análise simultânea pelos dois examinadores, obtendose diagnóstico de consenso que foi utilizado para avaliação da acuidade do método, de acordo com as classificações de BIRADSTM e de Le Gal.
As mamografias foram analisadas considerandose, quanto às microcalcificações: número por cm2 (<5; 520 e >20); densidade das microcalcificações mamárias (baixa, média e alta); morfologia baseada na classificação de Le Gal, sendo esta classificada em cinco tipos (tipo 1: anelar, tipo 2: puntiforme regular, tipo 3: poeira, tipo 4: puntiforme irregular e tipo 5: vermicular), acrescentandose a variável amorfa; distribuição das microcalcificações na mama em direção ao mamilo (difusas, agrupadas, segmentares, lineares, arboriformes).
As lâminas originais dos exames histopatológicos foram revisadas por dois patologistas, sendo um especialista em Patologia Mamária e outro com formação em Patologia, mas não especialista. As lâminas foram revistas sem o conhecimento prévio do laudo mamográfico ou do laudo histopatológico inicial. Nos casos em que não houve concordância, fezse nova análise simultânea das lâminas pelos dois examinadores, obtendose diagnóstico de consenso, que foi utilizado para avaliação da acuidade do método. Os dados do estudo histopatológico foram registrados em protocolo específico. Os critérios utilizados na classificação dos tumores invasivos foram os propostos pelo Colégio Americano de Patologia10. Os critérios utilizados para o diagnóstico histopatológico do carcinoma in situ foram os propostos por Page e Anderson11.
Com o objetivo de avaliar a acurácia do exame mamográfico, foram construídas tabelas 2x2 para determinar a sensibilidade, a especificidade, o VPP e o valor preditivo negativo (VPN), considerando o exame mamográfico como teste diagnóstico e o exame histopatológico do espécime cirúrgico como padrãoouro. Nas comparações para análise estatística, foram utilizados o teste do c2 com correção de Yates, e o modelo de proporções de Fleiss quadrático para cálculo do VPP. Os dados foram armazenados e analisados empregandose o programa EpiInfo 6.012.
Este trabalho foi aprovado pelo Comitê de Ética e Pesquisa da UFMG (parecer ETIC 183/03).
Resultados
O exame histopatológico dos 130 casos mostrou 28 casos com lesões malignas (21,5%) e 102 benignas (78,5%). As lesões malignas foram: 25 casos de carcinoma in situ (89,3%), dos quais um caso lobular in situ e 24 ductais in situ, além de três casos de carcinomas invasores (10,7%). e um caso de carcinoma lobular in situ. Dentre as lesões benignas, as mais comuns foram as alterações fibrocísticas da mama, seguidas pela hiperplasia epitelial moderada florida sem atipias.
O valor preditivo de consenso na comparação entre o exame mamográfico e o exame histopatológico segundo a classificação de Le Gal foi: tipo 2 de 3,1%, tipo 3 de 18,1%, tipo 4 de 26,4% e tipo 5 de 66,7% e não classificável de 5,2%. Esta nomenclatura foi acrescentada à classificação de Le Gal, porque não havia a morfologia amorfa. Os tipos 2 e 3 e amorfa foram benignos na maioria dos exames histopatológicos, enquanto os tipos 4 e 5 foram altamente suspeitos para carcinoma (Tabela 1).
Para a categoria 2 de BIRADSTM (lesões benignas), duas (1,5%) biópsias foram realizadas e o VPP de consenso para estas lesões foi zero. Para a categoria 3 de BIRADSTM (lesões provavelmente benignas), 56 (43%) biópsias foram realizadas e o VPP de consenso foi de 1,8%. Para a categoria 4 de BIRADSTM (lesões suspeitas de malignidade), 57 (44%) biópsias foram realizadas e o VPP de consenso foi de 31,6%. Para a categoria 5 de BIRADSTM (lesões altamente suspeitas de malignidade), 17 (13%) biópsias foram realizadas e o VPP de consenso foi de 60%. O VPP para as categorias 4 e 5 combinadas foi de 60% (27 casos de 45 biopsiados) em comparação com as categorias 2 e 3, cujo resultado foi 1% (1 de 57 casos biopsiados), conforme Tabela 2.
Os valores de acurácia para as comparações entre as categorias de BIRADSTM e de Le Gal de consenso dos dois examinadores e o exame histopatológico foi de 64,6 e 44,6%, sendo a sensibilidade a mesma de 96,4% e a especificidade do método de 55,9 e 30,3% respectivamente. O VPP de consenso foi de 27,5% para a classificação de Le Gal e de 37,5% para as categorias de BIRADSTM, e mostrouse altamente significativo (p<00001), de acordo com Tabelas 3 e 4.
Na reclassificação das mamografias dos casos operados pela classificação de Le Gal, teríamos encaminhado para exame anatomopatológico 98 casos (75,3%), sendo somente 28 casos (21,5%) diagnosticados como malignos, e deixaríamos de detectar um caso (0,7%) de malignidade. Por outro lado, evitaríamos cirurgia em 32 casos (24,6%). Quando comparamos com a classificação de BIRADSTM, observamos que teríamos enviado 72 casos (55%) para exame anatomopatológico e diagnosticado 27 casos (37,5%) de cânceres. Teríamos evitado 58 cirurgias (45%) e não teríamos detectado um caso (0,7%) de câncer. Em ambas as classificações, o caso não detectado foi o de uma neoplasia lobular in situ, de achado incidental.
Dos 130 casos selecionados, classificados inicialmente como suspeitos, 102 (78%), revelaram ser benignos pelas classificações de Le Gal e BIRADSTM, sendo, então, submetidos a cirurgias desnecessárias.
Discussão
A mamografia é considerada, atualmente, o método mais efetivo para rastreamento de câncer inicial de mama. As microcalcificações constituem um dos sinais radiológicos mais precoces relacionados ao carcinoma, que podem ser detectados pela mamografia. A alta sensibilidade observada em nosso estudo confirma a importância da mamografia em predizer malignidade no rastreamento do câncer de mama2. Atribuímos a baixa especificidade do estudo mamográfico observada em nosso trabalho à similaridade das características das microcalcificações mamárias, que podem ocorrer tanto em doenças benignas como malignas1. O VPP obtido no nosso estudo para as categorias de BIRADS (37,5 %) foi mais alto que o descrito na literatura. Isto pode ser devido ao emprego da dupla leitura por dois examinadores experientes em radiologia mamária e/ou ao uso do diagnóstico de consenso, possibilitando a melhora na detecção diagnóstica. O VPP para a classificação de Le Gal (27,5%) foi um pouco abaixo do descrito na literatura e o VPP de consenso para todas as categorias de Le Gal foram discordantes com a literatura. Este resultado pode ser devido à dificuldade encontrada pelos examinadores em descrever a morfologia das microcalcificações pela classificação de Le Gal. Nesta descrição, foi considerada mais de uma característica morfológica e, na avaliação de consenso que fizemos, prevaleceu apenas a característica mais importante e a mais preditiva para o estudo1,13. Além disso, a classificação de Le Gal não tem a categoria descritiva de microcalcificações amorfas, existente na classificação de BIRADSTM, razão pela qual criamos a categoria não classificável, cujo VPP em nosso estudo foi 5,2%.
Em nosso estudo, o VPP de consenso para as categorias de BIRADSTM 2, 3 e 4 foram concordantes com a literatura1,12, exceto pelo VPP da categoria 5, que foi abaixo do esperado. Uma possível explicação para esta diferença é que o VPP para a categoria 5 leva em consideração além das microcalcificações mamárias, outros achados associados, tais como nódulos, densidades assimétricas e distorções arquiteturais, que aumentam a chance de malignidade à mamografia e que não estavam incluídos no nosso estudo4.
Dos 130 casos analisados em nosso trabalho, 28 casos eram malignos (21,5%), dentro da faixa de malignidade relatada na literatura, que varia de 9 a 45%13. Alguns estudos têm demonstrado que a freqüência de carcinoma ductal in situ diagnosticado devido ao achado de microcalcificações mamárias em mamografia é mais alta que a freqüência de carcinoma invasor. Dentre os tipos de carcinoma ductal in situ, o tipo sólido com comedonecrose é muito mais freqüentemente associado à microcalcificação do que os carcinomas in situ sem necrose2,13.
Um caso avaliado em nosso estudo e considerado pelos dois examinadores como benigno a mamografia, teve diagnóstico final de neoplasia lobular in situ. Esta lesão tem sido considerada mais como um marcador de risco, geralmente não detectado pela mamografia, e, em muitos casos, representa achado do exame histopatológico. No caso citado, as microcalcificações encontradas não estavam associadas à neoplasia lobular in situ, mas em áreas de lesão benigna, sendo este considerado um achado incidental.
Em nosso estudo, as microcalcificações mamárias detectadas à mamografia representaram 75,3 e 55,3% das biópsias de lesões não palpáveis de mama, pelas classificações de Le Gal e BIRADSTM respectivamente. Nossos resultados empregando as duas classificações mostraram número elevado de casos suspeitos: 98 casos pela classificação de Le Gal e 72 casos pela classificação de BIRADSTM. Com a utilização das duas classificações, teríamos reduzido o número de cirurgias em 24,6% para a classificação de Le Gal e 44,6% para a classificação de BIRADSTM. Com a classificação de BIRADSTM, teríamos diminuído ainda 26 cirurgias (20%) em relação à classificação de Le Gal, sem deixar de diagnosticar os mesmos números de casos malignos14.
A proposta de classificação das microcalcificações feita por Le Gal foi útil por ter sido uma das primeiras classificações mamográficas capaz de correlacionar as microcalcificações mamárias com a probabilidade de malignidade histopatológica e de nortear outras classificações mais completas, como a de BIRADSTM. A classificação de BIRADSTM conseguiu melhores resultados que a classificação de Le Gal, porém, sem ter conseguido ainda diminuir a ambigüidade dos resultados mamográficos com o exame histopatológico. Mais estudos, maior experiência com os critérios e o desenvolvimento de novas técnicas poderão melhorar a acurácia e a padronização das interpretações mamográficas para as microcalcificações mamárias.
Recebido: 13/04/2007
Aceito com modificações: 12/02/2008
Trabalho realizado na Maternidade Odete Valadares e Hospital das Clínicas da Universidade Federal de Minas Gerais UFMG Belo Horizonte (MG), Brasil.