DOI: 10.1590/S0100-72032007000400003 - volume 29 - Abril 2007
Júlio César Rosa e Silva, Areana Diogo Nascimento, Ana Carolina Japur de Sá Rosa e Silva, Omero Benedicto Poli Neto, Hermes de Freitas Barbosa, Francisco José Candido dos Reis, Antônio Alberto Nogueira
Introdução
A histeroscopia diagnóstica é hoje considerada como o melhor método de investigação da cavidade endometrial, sendo método de escolha na investigação de sangramento uterino anormal, anormalidades da cavidade endometrial visíveis pela ultra-sonografia1,2 e durante a propedêutica de infertilidade3. Apresenta vantagens em relação à dilatação do canal endocervical e curetagem, principalmente quanto ao custo, por não necessitar internação e uso de sala cirúrgica, e quanto à segurança, pois não necessita de anestesia geral, e tem sido mais eficaz na identificação de anormalidades da cavidade endometrial, principalmente anormalidades focais4,5.
Embora a histeroscopia diagnóstica possa ser realizada ambulatorialmente, muitas vezes é necessário o uso de anestesia local e não raras vezes a anestesia geral endovenosa é requisitada pela paciente pelo desconforto e dor ocasionados pelo exame, e cerca de 30% das pacientes submetidas a este procedimento sem qualquer tipo de anestesia referem ter dor severa6. Em geral, um bloqueio nervoso paracervical ou intracervical é realizado com objetivo de minimizar esse desconforto. Mesmo assim, cerca de 15% destas pacientes tem dor severa7, o que mostra uma falha destes métodos anestésicos, além dos riscos de sangramento, injeção intravascular e dor provocada pela administração do anestésico local8. Outra opção, de aplicação sistêmica, porém de baixo risco em termos de complicações, é o uso endovenoso de tramadol, que parece reduzir significativamente a dor durante o procedimento histeroscópico9.
Algumas vias tópicas de administração de anestésicos, passíveis de serem realizadas ambulatorialmente, com finalidade de minimizar a dor e o desconforto causados pelo exame, já foram testadas com resultados diversos. A instilação transcervical de lidocaína 2% foi sugerida por alguns autores, mas alguns estudos mostraram que esta técnica de anestesia não apresenta bons resultados para prevenção da dor em procedimentos transcervicais como a histerossalpingografia10,11; entretanto, outros demonstraram ser este um método eficaz12,13, embora doses diferentes tenham sido utilizadas. Outros anestésicos, como a benzocaína, também foram testados sem sucesso14.
O spray de lidocaína é uma alternativa muito usada para prevenir a dor durante procedimentos cirúrgicos menores na cavidade nasal e oral, e para realização de exames endoscópicos do aparelho digestivo e respiratório. Em ginecologia, pode ser utilizado em procedimentos cervicais e na mucosa genital e já foi testado em procedimentos histeroscópicos, mas com resultados contraditórios15.
O objetivo deste estudo foi verificar a eficácia de um spray de lidocaína 10% borrifado diretamente sobre o colo uterino antes da realização de histeroscopia diagnóstica para minimizar a dor e o desconforto causados pelo exame.
Métodos
Um total de 261 pacientes atendidas consecutivamente participaram do projeto desenvolvido no Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo (USP), e foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa desta Instituição. Todas as pacientes foram informadas do estudo, concordaram em participar e assinaram termo de consentimento pós-informado.
Foram, então, randomizadas aleatoriamente por um programa de computador em dois grupos, um que recebia lidocaína spray (Xylocaine; Astra Pharmaceuticals Ltd.) tópico (GLd) e outro que não recebia nenhuma medicação prévia ao procedimento (GC), sendo subdivididas em grupo lidocaína com pacientes na menacme (GLda) e na menopausa (GLdb), e grupo controle com pacientes na menacme (GCa) e na menopausa (GCb). Os critérios de inclusão foram que a paciente tivesse indicação de histeroscopia diagnóstica e que aceitasse participar do estudo, e os de exclusão foram hipersensibilidade a lidocaína e contra-indicações ao uso da medicação (epilepsia, doença hepática, uso de anti-depressivos tricíclicos e de inibidores da monoamino oxidase e alterações cardíacas e respiratórias graves), porém nenhuma paciente foi excluída após a randomização.
O estudo foi realizado no período de março de 2004 a março de 2005 com o seguinte procedimento padrão: a paciente era levada para a sala de exames, posicionada e realizadas três borrifadas de lidocaína spray 10% na superfície do cérvix uterino (30 mg). Depois de cinco minutos o procedimento histeroscópico era iniciado. A histeroscopia diagnóstica foi realizada usando uma óptica de 4 mm com inclinação da lente de 30º e canal de trabalho de 5 mm (Karl Storz, Germany). Foi utilizado o CO2 como meio de distensão da cavidade uterina, com fluxo de 50 mL/min e pressão máxima de 200 mmHg. As biópsias endometriais foram realizadas sempre que uma lesão endometrial era identificada, fosse ela focal ou difusa, com auxílio de pinça histeroscópica de 2 mm (Karl Storz, Germany).
O sucesso do spray de lidocaína foi considerado quando a histeroscopia era realizada até o final e com boa visibilização da cavidade, sem a necessidade de outros procedimentos anestésicos. Imediatamente após o término do procedimento, a paciente respondia um breve questionário sobre dor e quantificava a dor sofrida durante o procedimento utilizando-se uma escala analógica visual de dor não graduada de 10 cm16. O questionário era aplicado por um pesquisador diferente daquele que realizava o exame e que não sabia a qual grupo de estudo pertencia a paciente. A intensidade da dor era medida em centímetros na escala analógica com auxílio de uma régua.
O cálculo estatístico foi realizado pelo programa GraphPad Prism® 2.01 32 Bit Executable (GraphPad Software Inc., San Diego, CA, EUA), utilizando-se os testes t não pareado, Mann-Whitney e c2, com nível de significância de 0,05.
Resultados
Participaram do estudo 261 pacientes divididas em dois grupos, sendo 132 no grupo que recebeu o spray de lidocaína (GLd) e 129 no grupo que não recebeu medicamentos antes da histeroscopia diagnóstica (GC). Não houve diferença estatística entre os grupos quando comparamos as variáveis idade, paridade e porcentagem de pacientes na menacme e na pós-menopausa (Tabela 1), nem quanto às indicações (Tabela 2) e achados histeroscópicos (Tabela 3). A biópsia foi necessária em 57 das 132 pacientes do GLd e em 48 das 129 pacientes do GC, não sendo observada diferença significante entre os grupos (p=0,96).
Em cinco pacientes do grupo que recebeu a lidocaína spray, foi necessária a aplicação de anestesia geral endovenosa por dor insuportável, sendo que no GC este número foi de quatro pacientes, não havendo diferença (p=0,09). Podemos considerar, então, que houve sucesso na realização do exame em 127 de 132 pacientes do GLd (96,2%) e em 125 de 129 do GC (96,8%).
Quando analisamos o escore de dor das pacientes e comparamos entre os grupos não encontramos diferenças: no GLd o escore médio foi de 4,3±2,9, e no GC foi de 3,9±2,5 (p=0,2), conforme Figura 1.
Se separamos os grupos em pacientes na menacme (GLda e GCa) e na pós-menopausa (GLdb e GCb), também não observamos diferença entre as usuárias de spray de lidocaína e as não usuárias. Pacientes na menacme que usaram lidocaína tiveram escore médio de dor de 4,8±3,0 e as não usuárias de 4,2±2,7, com p=0,15. Já na menopausa estes números foram de 3,5±2,6 e 3,2±2,0, respectivamente com p=0,9.
Somente encontramos diferença significativa entre os escores médios de dor quando comparamos as pacientes na menacme com as pacientes na menopausa, usuárias ou não de spray de lidocaína: entre as usuárias de lidocaína, p=0,01, e entre as não usuárias, p=0,04.
Nenhum efeito adverso ou desconforto provocado pela aplicação da lidocaína foi relatado.
Discussão
Nosso estudo não mostrou eficácia do uso do spray de lidocaína para diminuição da dor e do desconforto da paciente durante a histeroscopia diagnóstica, confirmando dados de estudos anteriores com injeção intracervical17, paracervical8 e mesmo anestesia tópica18,19, que também não mostraram esse benefício. No entanto, outros estudos encontraram melhora significativa na diminuição da dor com uso de lidocaína spray20,21 e com a instilação transcervical (intracavitária) de lidocaína líquida 2%12,13.
Resultados semelhantes aos encontrados neste estudo já foram obtidos. No entanto, houve diferença significativa quanto à dor somente durante a colocação da pinça Pozzi na cérvix uterina, não se encontrando diferença para a colocação da óptica no canal endocervical, durante a histeroscopia, biópsia endometrial ou cinco minutos após o término do procedimento22.
A histeroscopia diagnóstica é um procedimento suportado pela maioria das pacientes, como já demonstrado anteriormente7, mesmo quando é realizada a biópsia endometrial. Sem o emprego de nenhum procedimento anestésico adicional, nossa porcentagem de sucesso ao realizar este procedimento com e sem uso de lidocaína spray foi muito alto, 96,2 e 96,8%, respectivamente, confirmando dados publicados anteriormente7,20. Eventualmente, o uso de drogas analgésicas, como o tramadol endovenoso, pode ser feito com sucesso principalmente em casos em que a queixa de dor for mais acentuada9.
A administração da lidocaína spray tem muitas vantagens em relação à injeção intracervical ou paracervical, porque não está associada a dor para aplicação, riscos de sangramento, de injeção intravascular de lidocaína ou de infecção, porém não vemos utilidade no seu uso porque não observamos melhora significativa na diminuição da dor durante o procedimento. Talvez isso decorra do fato que os índices de dor durante o procedimento foram baixos (4,3 e 3,9 para os GLd e GC, respectivamente), o que é considerado como dor leve. Mesmo quando separamos as pacientes em dois grupos, menacme e pós-menopausa, não encontramos diferença entre os grupos que usaram e os que não usaram lidocaína spray, mostrando que isto não deve influenciar no resultado.
Porém, observamos em nossos resultados que as pacientes na menacme referem dor mais intensa que as pacientes menopausadas. Isso pode ocorrer por questões de temperamento e ansiedade das pacientes na menacme, que na sua maioria tinham indicação deste exame por infertilidade ou por sangramento uterino anormal, enquanto que as pacientes na menopausa na sua maioria eram assintomáticas e tiveram sua indicação associada a achados ultra-sonográficos22.
Com estes dados, concluímos que o uso da lidocaína spray durante o procedimento de histeroscopia diagnóstica não minimiza o desconforto e a dor que a paciente sente e, portanto, não traz benefícios quando de sua utilização.
Recebido: 14/11/2006
Aceito com modificações: 05/03/2007